Pagamento do auxílio emergencial em meio à alta de preços nos supermercados intensifica discussão em torno do direito à segurança de renda, mobilizando o poder público e a sociedade
O ano de 2020 ficará marcado como o ano da pandemia, uma das maiores crises globais. Os impactos do novo Coronavírus no mundo são enormes, mais de 32,9 milhões de pessoas contraíram a doença e mais de 990 mil morreram. O Brasil, por sua vez, vive uma das piores realidades entre os países: são mais de 4,7 milhões de casos e mais de 140 mil pessoas já perderam a vida.
Diante de uma crise econômica e sanitária, o Governo, diante das diversas pressões políticas, sociais e institucionais, propôs o chamado Auxílio Emergencial de R$ 200, que acabou sendo ampliado para R$ 600 no Congresso.
O pagamento foi realizado de abril a agosto, justamente no período em que o desemprego aumentou 27,6% no país, conforme informou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 23 de setembro. Isso trouxe segurança de renda para a população mais vulnerável.
O benefício acabou sendo prorrogado até o fim do ano, por medida provisória, mas o valor caiu para R$ 300, a serem pagos de setembro a dezembro. No entanto, a redução do valor do auxílio coincidiu com a disparada do preço de produtos da cesta básica. O arroz, por exemplo, registrou alta de 19,2% este ano, além de outros itens básicos como óleo (18,6%), leite (15,3%) e feijão (12,1%), que acabaram encarecendo as contas da população mais vulnerável que vive do trabalho.
A alta do dólar, que hoje é cotado a mais de R$ 5,60, é o principal causador da escalada dos preços nos supermercados. O real sofreu uma desvalorização, que já vinha ocorrendo antes mesmo da pandemia, de 30% no primeiro semestre, fazendo com que as exportações de arroz aumentassem significativamente. Enquanto as importações, que vinham crescendo até o começo do ano, regrediram mais de 60%, as vendas para o exterior subiram cerca de 300% desde o início da pandemia.
Com o isolamento social sendo praticado no mundo todo, a demanda por itens da cesta básica aumentou consideravelmente. O índice mundial de preços de alimentos atingiu 96 pontos, de acordo com o relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Somam-se a isso a longa estiagem que tem prejudicado as plantações e o período atual de entressafra. O resultado é uma dificuldade cada vez maior para as redes varejistas competirem por estes produtos.
Na prática, é como se o consumidor brasileiro estivesse competindo pelo arroz com consumidores de outros mercados, como o chinês. Mas com a nossa moeda desvalorizada, o produtor brasileiro prefere exportar. O pouco que sobra por aqui é vendido aos supermercados a um preço elevado, devido à baixa oferta. No final desta cadeia, o consumidor tem que conviver com altas de quase 100%, como foi o caso do arroz nos últimos 12 meses.
A expectativa dos especialistas é de que os preços não caiam tanto pelo menos até o início do ano que vem. Cenário que preocupa, uma vez que 22% do orçamento das famílias pobres é destinado à alimentação, segundo o IBGE. Em tempos de crise econômica e sanitária, este número pode ser ainda maior.
É observando esta realidade que parlamentares e organizações da Assistência Social, como o Fórum Nacional de Secretários de Estado de Assistência Social – Fonseas, e demais entidades, defendem a permanência de uma Renda Básica, nos patamares atingidos pela emergencial, para, principalmente, enfrentar a crise social e econômica pós pandemia.
Hoje, observamos uma queda no número de beneficiários do auxílio emergencial. Na quinta parcela do auxílio, foram 41% menos pessoas alcançadas e uma redução de mais de R$ 18,1 bilhões no investimento em relação à primeira parcela. Mesmo que a fila de espera do Bolsa Família, o mais importante programa social do país, já chegue a 1,8 milhões de famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza, com 40% destas localizadas no nordeste, de acordo com dados de julho do CadÚnico.
As principais repercussões dessas reduções são, para Shirley de Lima Samico, Coordenadora Geral de Planejamento e Vigilância Socioassistencial, “as inseguranças de renda para as famílias, sobretudo porque há um perfil de mulheres que, sem escola, não têm como sair para trabalhar”. Segundo Shirley, a diminuição do auxílio “tem correlação direta com a segurança alimentar e a sobrevivência destas famílias”.
Um Renda Básica, para além dos valores e cobertura praticados antes da pandemia pelo programa Bolsa Família, aumentaria a atividade econômica, tendo em vista os efeitos de fomento do consumo das famílias, o que produz um efeito dominó na economia nacional.
Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) revelou que, se o auxílio emergencial fosse estendido até o fim do ano por R$ 600, teríamos um acréscimo de 0,55% ao Produto Interno Bruto (PIB). O estudo também mostra que 45% do auxílio, se mantido até dezembro pelo valor original, seria financiado pelo aumento da arrecadação de impostos com o aquecimento da economia.
O Bolsa Família é um exemplo positivo de programa de transferência social quanto aos impactos locais. A cada R$ 1 investido no programa, adiciona R$ 2,40 no consumo das famílias e acresce R$ 1,78 no PIB, segundo números apresentados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2013.
Renda Cidadã e a proposta da sociedade civil: debate em aberto
O governo federal anunciou a manutenção do Bolsa Família e abandonou a proposta do Renda Brasil, após a repercussão negativa quanto a indicação de fontes de financiamento que na prática cancelam direitos como seguro defeso. Dias depois, o governo anunciou a criação do Renda Cidadã.
No dia 28 de setembro, o presidente e sua equipe divulgaram os meios pelos quais pretendem financiar o projeto, o que motivou novas críticas do Congresso, mercado e sociedade civil. Numa tentativa de driblar o teto de gastos (estabelecido pela EC 95/16), o Governo propôs:
- Encaminhar ao Renda Cidadã até 5% dos novos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb);
- Restringir o pagamento de precatórios a 2% das receitas correntes líquidas da União e repassar o valor remanescente ao programa.
Dessa forma, o orçamento do Bolsa Família para o ano que vem, que deve ser de R$ 35 bilhões, seria complementado por essas duas fontes de financiamento. Entretanto, o vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) afirmou na quinta (01) que o governo já não trabalha mais com possibilidade de financiamento anunciada inicialmente.
Por meio de nota, o Fórum Nacional de Secretários(as) de Estado da Assistência Social (FONSEAS) e a coalizão Direitos Valem Mais (movimento pela revogação da Emenda Constitucional nº 95/16) se manifestaram em defesa da manutenção da renda básica com o aperfeiçoamento das ferramentas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), como o cadastro único, propondo a ampliação dos recursos e da abrangência do Bolsa Família, chegando a um total de R$ 230 bilhões anuais.
Com a ampliação da cobertura, toda a família brasileira com renda de até R$ 600 por pessoa passaria a ser atendida. Assim, seriam beneficiadas não somente as famílias pobres ou extremamente pobres, mas também famílias e indivíduos altamente vulneráveis à pobreza.
Conheça o movimento de Coalização na Assistência Social pelo fim do teto dos gastos para as políticas sociais, e em defesa de um piso emergencial para enfrentar os efeitos da pandemia.
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Referências
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OLIVEIRA, João André Silva de. Transferência condicionada de renda e dinamismo da economia: O caso do Bolsa Família no Brasil. 2011. 142 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Diplomacia, Instituto Rio Branco, Brasília, 2011.
ROCHA, Sonia. O programa Bolsa Família: evolução e efeitos sobre a pobreza. 2009. 20 v. Monografia (Especialização) – Curso de Economia e Sociedade, Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, Campinas, 2009.
ESTUDO da UFMG defende extensão do programa de renda emergencial até dezembro. Universidade Federal de Minas, 25 de mai. de 2020. Disponível em: <https://ufmg.br/comunicacao/assessoria-de-imprensa/release/estudo-da-ufmg-defende-extensao-do-programa-de-renda-emergencial-ate-dezembro>. Acesso em: 28 de set. de 2020.
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