O Fórum Nacional de Secretários de Estado de Assistência Social – Fonseas e o Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social – Congemas, após diálogo e participação dos Coordenadores Estaduais do Cadastro Único, vem, por meio desta manifestação, divulgar amplamente posicionamento conjunto sobre os riscos das alterações no Cadastro Único e denunciar a flagrante ruptura do pacto federativo na gestão do Programa Auxílio Brasil.
O governo federal decidiu realizar alterações no CadÚnico sem qualquer discussão com as organizações representativas dos gestores estaduais e municipais que possuem corresponsabilidades na gestão compartilhada do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, conforme estabelece a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS (Lei nº 8742/1993), bem como na base normativo-jurídica dessa política, devidamente pactuadas e deliberadas nas instâncias do SUAS.
Importante destacar que o Cadastro Único para Programas Federais está instituído na LOAS, em seu artigo 6º-F, como “registro público eletrônico com a finalidade de coletar, processar, sistematizar e disseminar informações georreferenciadas para a identificação e a caracterização socioeconômica das famílias de baixa renda”. Tal previsão legal se dá no âmbito do pacto federativo, o que implica corresponsabilidades e mecanismos de controle democrático pelas instâncias representativas dessa política. Desse modo, trata-se de uma matéria que deve passar por discussão colegiada, pactuação e deliberação, assim como a operacionalização do Auxílio Brasil, tendo em vista as competências previstas legalmente.
Apesar da previsão legal e da disposição política dos atores do SUAS em qualificar a prestação de serviços e a provisão dos benefícios socioassistenciais, o governo federal instituiu, mesmo diante de diversos alertas, tendo em vista a experiência do Auxílio Emergencial quanto a forma de acesso, as barreiras tecnológicas e a falta de informação, o Decreto nº 11.016, de 29 de março de 2022, que “regulamenta o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal”. Dentre as previsões destaca-se o fato de que o “cadastramento das famílias será realizado pelos Municípios que tenham aderido ao CadÚnico ou pelas famílias, por meio eletrônico, na forma a ser estabelecida em ato do Ministro de Estado da Cidadania”; o CadÚnico será operacionalizado por meio de plataforma multicanal, na forma a ser estabelecida em ato do Ministro de Estado da Cidadania (Art. 8º)”.
Observamos que no Decreto nº 10.852, de 8 de novembro de 2021, que regulamenta o Programa Auxílio Brasil, com foco no estabelecimento de competências dos entes federados, linha de pobreza e extrema pobreza, e valores dos benefícios, são estabelecidas competências que reforçam a necessária gestão integrada, considerando a previsão, por exemplo, da adoção de mecanismos de intersetorialidade; a ênfase nos incentivos de gestão baseados em resultados e compromissos mediante adesão; a necessária gestão interfederativa do CadÚnico; a provisão de serviços; o controle das condicionalidades.
O Decreto nº 11.013, de 29 de março de 2022, que altera o Decreto nº 10.852, de 8 de novembro de 2021, que regulamenta o Programa Auxílio Brasil, estabelece, por sua vez, que a extrema pobreza, é caracterizada pela renda familiar mensal per capita no valor de até R$ 105,00 (cento e cinco reais), denominada “linha de extrema pobreza”; e a pobreza, é caracterizada pela renda familiar mensal per capita no valor entre R$ 105,01 (cento e cinco reais e um centavo) e R$ 210,00 (duzentos e dez reais), denominada “linha de pobreza.” É preciso reforçar que tal definição se distancia de critérios internacionais. Reforçamos que os critérios do Programa Auxílio Brasil, como renda e definição da fila de espera, hoje baseada no Censo de 2010, precisam, igualmente ser discutidos nas instâncias do SUAS. Um caminho apontado pelos gestores é o próprio Cadastro Único ser a referência para as estimativas de famílias a serem beneficiadas. Estes aspectos só reforçam a importância do diálogo e da construção coletiva.
Entendemos que tem ocorrido uma desorganização da gestão intergovernamental, uma evidente fragilização do SUAS, com injustificável centralização em esfera federal das políticas sociais, o que conflita com as previsões legais. São diversos os estudos científicos que demostram a falência do modelo centralizado de gestão de políticas públicas e meritocrático, por se pautar numa concepção de políticas sociais como concessão provisória e residual, alimentada pela narrativa do esforço individual.
Sob o discurso da modernização o que ocorre na gestão do CadÚnico e do Auxílio Brasil é a instituição de verdadeiras barreiras no acesso, diante dos instrumentos excludentes. Alguns questionamentos podem ser dirigidos aos gestores federais: a população vulnerável tem acesso amplo à internet de banda larga e aos recursos de comunicação, como smartfone com pacote de dados suficientes? Estão sendo considerados fatores como perfil da população, realidades locais e regionais, como comunidades isoladas, pessoas analfabetas ou com analfabetismo funcional?
As informações sobre a gestão do CadÚnico e do Auxílio Brasil são desencontradas e muitas vezes inexistentes; existem iniciativas de relação bilateral com municípios, sem envolvimento das instâncias representativas, podendo levar a uma prática nefasta de “favoritismo”, de privilégio, o que conflita com os princípios da administração pública e do pacto federativo; o cálculo de incentivos financeiros para o aprimoramento do Programa Auxílio Brasil baseia-se em provisões que não são acompanhadas de recursos para serviços, além de condicionarem averiguações que poderiam ser evitadas caso o acesso prioritário ocorresse no âmbito da rede, por entrevistadores qualificados.
Cabe destacar que os recursos repassados aos municípios possuem defasagens significativas e são insuficientes, confirmando um quadro de grave retirada e insuficiência nos recursos para atender a população; além da desorganização da gestão compartilhada do CadÚnico, o Auxílio Brasil se mostra absolutamente ineficaz, apresenta um conjunto complexo e pontual de auxílios, insuficientes para atender as demandas crescentes por proteção social; a forma de gestão, a regra para a definição do Índice de Gestão Descentralizada conforme o cenário de 2020, desconsiderando a realidade atual dos municípios, sobretudo diante do aumento exponencial de pessoas e famílias que buscam cotidianamente os serviços, são fatores excludentes da população mais vulnerável.
Um dado importante a ser debatido com a sociedade, especialmente com as/os usuárias/os do SUAS, é que a transição do Auxílio Emergencial para o Auxílio Brasil gerou uma exclusão de 21.337.663 de pessoas, com a centralização no governo federal, onde representantes de Estados e Municípios ficaram sem as orientações necessárias para viabilizar acessos. Desorganizar e dificultar a acesso ao Auxílio Brasil pode ser uma estratégia de reduzir a abrangência do programa, em evidente descumprimento da necessária implementação da renda básica no Brasil, conforme disposto na Constituição Federal. O que presenciamos, na verdade é a imposição de um programa incerto e com um desenho complexo e de difícil operacionalização.
As/os Gestoras/es do SUAS não são contrários à implantação e de novos dispositivos de acesso e comunicação, mas é preciso considerar a realidade do Brasil, quanto acesso de informações e facilidades para realizar cadastramento e acessos, além do desperdício do potencial de inteligência de dados do Cadastro Único para a formulação de políticas públicas.
Desse modo, entendemos que a modernização do CadÚnico, concentrada na existência de prevalência de um aplicativo, não pode esvaziar as gestões estaduais e municipais, quanto às corresponsabilidades. A pretensa modernização está sendo justificada pelo governo federal como prática que acompanha o “êxito” do Auxílio Emergencial. No entanto, a forma de gestão centralizada do Auxílio Emergencial gerou uma gigantesca demanda nos Centros de Referência de Assistência Social – CRAS, que não possuíam orientações e ferramentas de gestão para tal finalidade, e até mesmo recursos humanos suficientes, em plena pandemia, para atendimento das demandas. É de conhecimento geral que muitas pessoas não acessaram esta segurança de renda durante sua vigência, justamente pela centralização em âmbito federal e desconsideração da rede de serviços na Assistência Social.
Estados e municípios foram excluídos de todo o processo de atualização e modificação do Cadastro Único, evidenciando mais uma atitude centralizadora do governo federal, com prejuízos para a população em situação de vulnerabilidade. Desse modo, não existe justificativa para a inversão da lógica instituída, notadamente de priorizar o acesso direto. Entendemos que a Política de Assistência Social está sendo atacada em seus pilares estruturantes, em diversos aspectos, sobretudo quanto à inviabilização do acesso universal a quem dela necessitar.
Importante reforçar que o Fonseas, o Congemas e as Coordenações Estaduais sempre se colocaram à disposição para a construção conjunta de melhorias, modificações e modernizações do Cadastro Único com o objetivo de atender a população mais vulnerável, público do Cadastro Único, e usuária da política de Assistência Social, de forma qualificada e universal. As Coordenações Estaduais não estão sendo capacitadas pelo governo federal para realizar, conforme a política de Assistência Social, no seu papel de orientar as gestões municipais, decisão que encontra sintonia com a decisão de excluir os municípios e estados do processo.
A população mais pobre e que vive em contextos mais desiguais no Brasil tem sofrido as consequências da adoção de medidas que fragilizam as políticas e os sistemas públicos. Não compactuamos e nem tampouco participamos das decisões em âmbito federal que afetam a sociedade, sobretudo pelo efeito reduto do acesso aos benefícios e políticas sociais via Cadastro Único.
Permanecemos à disposição para alinhamentos que recuperem o pacto federativo na Assistência Social, ampliem direitos e qualifiquem o SUAS, especialmente diante do contexto de grave crise social e econômica, aprofundada pela pandemia. Realidade que demanda forte integração e união de esforços para ampliar a proteção social.
Brasília, 31 de março de 2021.
CYNTIA FIGUEIRA GRILLO ELIAS DE SOUSA OLIVEIRA
Presidente do Fonseas Presidente do Congemas